Mensagem Final
   
   
 

 

 

 

 

 

 


Margarida Fernandes (Grupo Rosa) - BRINDE

Boa noite a todos. Em nome do grupo rosa e de toda a Universidade de Verão, quero dizer-lhe que é com um enorme prazer que estamos perante a sua presença. A Universidade não é ficção, é realidade. Mas esperamos que de alguma forma seja um facto inspirador, para uma crónica sua. Desta forma, o grupo rosa, propõe a toda esta comunidade académica que levante o copo para fazermos um brinde à Dra. Clara Ferreira Alves.

 

Carlos Coelho – Director da UV

Muito boa noite. Quero começar por fazer uma referência ao senhor Governador Civil. É que provavelmente ele nunca terá estado numa sala com tantos membros do Governo. Ele ainda não sabe, mas esta tarde fizemos uma simulação de Assembleia e esta sala está cheia de Primeiros-Ministros e Ministros que exerceram essas funções. (PALMAS).

Senhor Presidente da JSD, senhor Secretário-Geral Adjunto do PSD, minhas senhoras e meus senhores. Há pessoas que nós gostamos muito de ler. E que vamos seguramente gostar muito de ouvir. A Dra. Clara Ferreira Alves que é de todos nós conhecida e agora exerce as funções como Directora da Casa Fernando Pessoa, tem como hobby, a leitura. A comida preferida não sei como é que a posso classificar, talvez tipicamente feminina, é queijo e vinho, champanhe e chocolate. O animal preferido é a pantera. O livro que nos sugere é Moby Dick ou Macbeth de Shakespeare, [que faz lembrar, se o Deputado Gonçalo Capitão me permitir a recordação, uma vez que num debate parlamentar um Deputado de outra bancada (acho que era do PS) citava um autor que não conhecíamos, que era o Chico Espia, e só mais tarde viemos a perceber quem era o Chico Espia a que ele se queria referir (RISOS)].

O filme que gostou e nos sugere é “O Leopardo” de Visconti. E a qualidade pessoal que mais aprecia nos outros é a honra. A Dra. Clara Ferreira Alves é uma cidadã independente, não é militante do partido e é com muito gosto que registamos a simpatia e a disponibilidade com que desde logo aceitou o nosso convite.

Eu tenho o privilégio nesta Universidade de fazer a primeira pergunta que lhe dá o pretexto para fazer a sua primeira intervenção. E naturalmente teríamos que falar de leitura. Há uma geração “ensanduíchada” com uma cultura de iliteracia, com uma cultura nacional que não estimulou o gosto pela leitura. Presentemente, somos todos bombardeados pela invasão das novas tecnologias, em que a informação nos surge por diversas vias cada vez mais facilitadas e muitas delas dispensando a leitura. Face a essa circunstância, há já quem pergunte: estará a leitura em crise? Há futuro para o livro? Daqui a cem anos ainda haverá espaço para o livro?

Esta é a reflexão, que nós propomos como ponto de partida para esta nossa conversa ao jantar. Dra. Clara Ferreira Alves, a palavra é sua. Muito obrigado. (PALMAS).

 

Dra. Clara Ferreira Alves

Boa noite a todos. É um grande prazer. Agradeço o convite do Carlos Coelho para estar aqui com vocês. Eu sou muito politicamente incorrecta. Vou continuar a fumar, enquanto falo com vocês. Aprecio imenso a vossa juventude, que eu já não tenho e que tive. Eu sou de Direito, devo ter aqui uma série de colegas, mas quando tínhamos a vossa idade, o Pedro Santana Lopes foi meu colega em Lisboa, depois pirei-me para Coimbra, eles ficaram a matar-se uns aos outros em Lisboa, o Zé Manel Durão Barroso, também. Eu sou dessa geração. Portanto, faço parte da geração que tem entre 45 e 50 anos e que está “soit disant” no poder, “whatever that means”.

E é agradável estar com gente da vossa idade. É muito agradável, porque não só me lembra o enorme desejo de vida que se tem na vossa idade, eu sei que há aqui gente entre os 16 e os 30 anos, mas aos 30 anos ainda se é jovem, eu acho que é só a partir dos 40 que se entra naquilo que se chama a média idade, mas que não existe, porque há pouca gente de 80 anos. Mas em todo o caso, há uma sageza que se vai adquirindo, uma experiência - sobretudo a experiência do sofrimento - entre os 20 e os 30, há uma idade da inocência que é absolutamente maravilhosa, mas que é também a idade do grande desejo da imortalidade. E isso, quando estou com gente dessa idade, e me lembro da gente da minha idade quando tinha essa idade, faz-me sentir extraordinariamente, não viva, mas sim muito bem disposta. Viva já eu estou. Mas bem disposta e muito bem-humorada e além disso vocês são todos altíssimos. A minha geração era toda baixota. Vocês já são da geração do Cérélac e do Nestum, e portanto, são enormes. Nós ainda somos a geração que apanhou com a segunda metade do Salazarismo, que comíamos farinha Maizena. Mas não era exactamente a mesma coisa, posso-vos garantir. E portanto, acho que vocês são bonitos. Os adolescentes, os jovens portugueses são bonitos. (PALMAS).

São. E são bonitos porque vivem melhor do que vivíamos. São bonitos porque vocês têm mais oportunidades, mais acesso, melhor qualidade de vida e, sobretudo têm uma coisa maravilhosa que eu já tive, porque eu apanhei o 25 de Abril com 17 anos, no 1ª ano da Faculdade de Direito de Lisboa, mas ainda apanhei o medo. O medo. Não vou falar no fascismo, porque o fascismo já ninguém sabe o que é. Mas apanhei o medo e a falta de liberdade, que é uma coisa que vocês não sabem o que é. E que é uma coisa estranha.

Entre outras coisas, por exemplo, lembro-me de ser presa. Presa, detida, enfim, por ter ido ver um filme do Eiseinstein, chamado “O Couraçado de Potemkin”. Independentemente de gostarmos ou não do filme, o simples facto de termos ido ver aquele filme, fez com que a PIDE nos levasse todos nessa noite dentro, para o calabouço. É uma experiência que vocês acham totalmente absurda, mas que no meu tempo não era assim tão absurda. De facto havia uma disciplina, um terror, um medo, todo um programa de denúncia, (odeio a denúncia, é por isso que eu aprecio a honra), que nos intimidava. E nada há de pior para as gerações e para a educação dos jovens do que a intimidação e o medo. A coragem é a grande qualidade. A coragem e a convicção são a honra. É aquilo que vos vai guiar pela vida fora. É aquilo que me guiou pelo menos a mim e creio que à minha geração, com todos os seus defeitos (mas, enfim, está a fazer as suas coisas o melhor que pode e sabe). Embora o José Manuel Durão Barroso, dois dias depois do 25 de Abril, tenha pegado fogo ao carro do Martinez, na faculdade de Direito. Foi o primeiro grande acto de libertação. (RISOS).

É verdade. O professor Martinez era um professor que nos atormentava de uma forma absolutamente cruel, sádica e de filme e portanto dois dias depois, o belo “boca de sapo” ardeu. E eu assisti com gosto àquele incêndio. Portanto, estão a ver, é uma geração que hoje está a ficar com 50 anos, mas fez umas belas partidas, não é? E eu espero que, vocês que já não precisam de fazer estas partidas, as façam, levantem sempre alguma poeira nos sítios onde passarem. É o grande conselho que eu dou.

Mesmo não tendo medo e vivendo em liberdade, é do “novo” e dos “conflitos do novo” que nasce uma revolução. Não no sentido político tradicional, mas no sentido de novidade, no sentido estético e no sentido moral. É dos conflitos do novo que nasce o mundo que vem a seguir. O conformismo mata e o conflito faz avançar o mundo, faz avançar as sociedades, não interessa a cor política, não interessa a esquerda, a direita, o centro, em cima, em baixo, não interessam as dicotomias, as nomenclaturas, só interessa isto. Do novo nasce sempre revolução. E a revolução tanto pode ser uma revolução libertária, como conservadora, como castrista. Não interessa.

E depois as revoluções fossilizam, foi o que aconteceu em Cuba e em outros lugares. Noutros lugares então, meu Deus, não fossilizaram, é pior do que isso, não é? O antigo Império Soviético, já não é um fóssil, é uma cicatriz de um fóssil. E portanto, quando fossiliza, quando se pára, mata-se o novo e nós envelhecemos. E quando nós envelhecemos, a sociedade pára. Portanto, eu acho que estes projectos, estas Universidades de Verão, estes encontros de jovens, isto é um novo, é o conflito – disseram-me há bocado, houve aqui um governo bestial que defendeu o corte absoluto de subsídios à cultura, mecenatos, dinheirinhos, não sei quê. O Estado nunca mais interviria na cultura e ganhou na argumentação. E portanto foi nesta argumentação, foi aprovada. E eu adoraria ter assistido a esse debate, sinceramente. E eu acho isto bom. Não a proposta, mas a argumentação. O brilho da argumentação é extraordinário.

Suponho que alguns de vocês terão a paixão política, o brilho da argumentação. As grandes artes clássicas gregas e depois latinas da oratória e da retórica, são fundamentais. Quem não dominar a argumentação, quem não dominar a oratória, a retórica e a possibilidade de se dirigir naturalmente ao outro, convencendo-o, não pode fazer carreira política e não poderá provavelmente fazer as outras que não são políticas. A argumentação é essencial. E o brilho da argumentação é essencial.

E é aqui que entra o meu livro. Quando se estuda numa universidade lêem-se livros, lêem-se sebentas. Quem não leu o mínimo, tem dificuldade em argumentar. Como diz um escritor inglês que eu gosto muito, Martin Aimes, é difícil vir da cintura industrial e escrever grandes romances, e é. Mas isso já estamos a falar de literatura. A literatura tem uma exigência intelectual muito grande. Quando falo de literatura, falo evidentemente do romance, da novela, da poesia, do ensaio. Falo de uma reflexão estética, duma encenação teatral, e é isso a literatura, é uma encenação filosófica e teatral do homem – e já lá iremos para o “Chico Espia” – mas, dizia eu, o livro, ler é fundamental.

E porquê o livro? Dir-me-ão vocês: “eu posso ler num computador. Eu posso ler cartazes”. (Mas muitos cartazes seguidos, é cansativo e pode-se ficar estrábico). Porque ainda não se descobriu nada mais prático, funcional, barato, demográfico e democrático do que o livro. Uma das grandes discussões, quando eu era jovem, quando estava nos 35, eu trabalhei no Expresso muitos anos, (já sei que o Francisco Balsemão esteve aqui antes de mim), o Expresso é um maravilhoso lugar de anarquia e de rebeldes, foi um grande posto da democracia portuguesa. Mas foi mesmo. Continua a ser.

Muito da democracia portuguesa nós devemos ao Francisco Balsemão, que tem sido estes anos todos um gentleman e um príncipe. Tomara eu que todos os patrões de imprensa, que viessem a seguir a ele, se portassem como ele. Não digo isto por amizade, digo isto porque é exactamente isso que ele foi. Foi um príncipe, foi um misto de liberdade. Trabalhar ali com aquela liberdade: nunca me cortaram uma vírgula. Nunca ninguém me deu nada. Tive guerras monumentais no Expresso - horríveis. E trabalhava nos livros, entre outras coisas, trabalhei na Revista, trabalhei nos livros, fui editora literária, durante anos. Nessa altura, no Expresso, nós passámos por fases: havia uns que escreviam à mão e a caneta de tinta permanente, depois passámos para a máquina de escrever, eu batia furiosamente, arrancava as teclas todas das máquinas de escrever, de vez em quando era preciso substituir as máquinas de escrever e como o Francisco Balsemão odiava gastar dinheiro, ficava doido com a quantidade de máquinas de escrever que a gente da cultura, (como ele dizia), a cultura que era um grupo de lunáticos, estragava material em série.

E depois passámos para o computador. E houve uma enorme revolta, pode-vos parecer absurdo, dentro da minha redacção a começar por mim, que era extraordinariamente conservadora, eu disse: - “eu não quero um computador”. (Os computadores eram horríveis, naquela altura). “Eu não escrevo em computador, não me apetece, isto é horrível, não sinto a tecla, não consigo sentir o teclado, não me habituo”.

O Francisco Balsemão teve imensas guerras para nos adaptar às novas tecnologias. Nós não queríamos, porque éramos os dos livros. E portanto, a nossa missão era resistir o mais possível às tecnologias. Evidentemente que isto era uma atitude idiota e reaccionária e eventualmente todos nós nos habituámos. Até o José Quitério que é aquele homem que faz a crítica gastronómica, e que estava encarregado do arquivo, porque no Expresso as pessoas faziam as coisas mais estranhas, e ele tinha o arquivo.

O arquivo era uma coisa impensável. Porque ninguém encontrava nada. E era um arquivo não informatizado, evidentemente. Feito com pastas com papéis. Ele era um homem que gostava de alfarrábios e de alfarrabistas, e portanto tinha organizado o arquivo do Expresso como se fosse uma loja de alfarrabistas da baixa. Imaginem: “Mitterrand está doente. A pasta do Mitterrand?”, ninguém sabia da pasta do Mitterrand. Ninguém sabia de nada naquele arquivo. Depois o Quitério foi escrever críticas gastronómicas e fez uma guerra que disse: “eu recuso-me a escrever a não ser com a minha caneta de tinta permanente em papel”. Então os escritos vinham, tinham que ser descodificados por uma secretária, dados a uma teletipista que depois os passava para computador.

Bom, vocês imaginam as lutas gloriosas que houve naquele jornal contra a tecnologia. Os dos livros então, sobretudo os mais antigos que eu, diziam, nem pensar que vem agora este instrumento que é a morte do livro e a morte da literatura e a morte do pensamento. E eu na altura até produzi umas declarações bastante imbecis sobre o tema, em televisão, em que me defini como contra a Internet, que é uma coisa genial que me faz lembrar uma anedota do Marco Paulo, aquele cantor pimba, o Marco Paulo disse uma vez, «“então Marco Paulo e a Internet, como é que é a sua relação com a Internet?”, “Se a Internet me quiser convidar, eu estou absolutamente disponível.”» (RISOS).

Ele não sabia o que era a Internet, achava que era uma empresa, ou uma coisa assim. Espectáculo. E no princípio da Internet, eu também disse mais ou menos a mesma coisa que o Marco Paulo. Não disse: “eu não estou disponível para a Internet. Se a Internet me quiser convidar, eu estou indisponível”. Mas disse: “isto é uma loucura. Isto vai acabar com tudo e tal”. Exactamente como as pessoas do cinema – e eu estive nesses congressos todos onde se discutia isso por essa Europa, no Conselho da Europa, faziam-se congressos para discutir estas coisas, íamos para sítios como Taormina discutir o futuro da tecnologia contra o livro, do vídeo contra a fita, enfim – os dos filmes também diziam quando vier aí o vídeo, nós ficamos na miséria, porque toda a gente vai copiar os filmes. E portanto há sempre uma teoria da catástrofe, face ao futuro. O futuro é uma coisa ameaçadora, é uma coisa que nos ameaça, que ameaça o status quo. E portanto, a rigidez que nos caracterizava no sótão do Expresso - nós achávamos que aquilo ia dar cabo, não apenas do nosso pensamento, tal qual a nossa corrente de pensamento, mas iria dar cabo dos nossos dedos e da nossa capacidade de criar e da literatura e que já ninguém iria ler o Moby Dick, nem o Melville e portanto, era uma catástrofe. Evidentemente que crescemos o suficiente. Hoje ninguém dispensa o seu portatilzinho, não me consigo imaginar sem computador. Faço tudo em computador, passei anos a resistir também aos emails. E diziam-me: “é tão fácil, não escreves cartas, falas para os Estados Unidos, está lá o email de manhã, abres o mail e está lá”. Eu disse: “Eu quero lá saber de emails, como é que se pode agora estar a comunicar com uma pessoa por mail?” Bom, vocês percebem que isto é uma questão geracional.

O Saramago é autor de uma célebre frase “mas nunca ninguém derramará uma lágrima – que é uma frase bonita – sobre um email”. O email é uma coisa etérea e que desaparece. E portanto, acaba a postalografia, acabam-se as cartas. O Saramago é um catastrofista, como toda a gente sabe, já não escreve sobre personagens, nem personagens portugueses, mas sobre a condição humana e ele acha que a condição humana é terminal, que o homem deixou de fazer sentido, que o humanismo deixou de fazer sentido e que o homem caminha para a sua aniquilação. Coisa de que eu discordo absolutamente. Basta olhar para esta sala para se perceber que não há aqui nenhuma auto-aniquilação em perspectiva e não haverá nos tempos mais próximos.

Mas há evidentemente sempre uma enorme resistência em relação ao futuro que tem a ver com o modo como nós fomos educados. E tanto o Saramago, como eu, embora ele tenha hoje 80 e alguns anos e eu 48, portanto, sensivelmente metade, mas somos de uma geração livresca. Nós fomos educados com os livros. Nós nascemos com os livros. O livro era o meio de aceder ao conhecimento. Não é à informação. A informação vem mais tarde. A informação é um conceito que foi inventado, ou pelo menos a sociedade de informação foi sociologicamente inventada e estabilizou no final dos anos 70. A minha geração e as gerações anteriores à minha vinham dos livros. Vinham primeiro da cartilha de João de Deus, depois iam por ali fora e de certa forma, para quem tinha livros ou gostava dos livros, ou vinha dos livros, as casas das pessoas dividiam-se em casas com livros e casas sem livros. Que é uma dicotomia que eu ainda tenho. Não eram casas de pessoas ricas e de pessoas pobres. Eram casas de pessoas que tinham livros e pessoas que não tinham livros. E eu acho que já contei esta história, de que uma vez entrei numa casa de uma pessoa portuguesa, muito bem sucedida e muito rica, uma magnífica casa aliás, que era uma casa de campo, uma enorme casa de campo, e fiquei absolutamente aterrada porque não vi um livro em toda a casa. Não havia um livro.

Nunca me tinha acontecido, para dizer a verdade. Nunca tinha visto uma casa onde não havia genuinamente um livro. Havia revistas, bastante brejeiras, e não havia um livro. E eu fiquei fascinada porque tivemos um tour da casa e eu disse: “como é que é possível que ninguém leia um livro aqui? Que ninguém tenha um livro de família, três livros que o avô deixou? Dois livros da tia?” Não havia! A pessoa é um “self-made-man”, auto-criado, com um extraordinário esforço pessoal, leu os livros que tinha a ler e provavelmente guardou-os depois em caixotes na cave, suponho eu, e depois tirou os livros da casa e a casa não era minimalista, era uma casa. Portanto não era por um projecto arquitectónico minimalista, onde os livros não estão à vista. E aquilo intimidou-me. Quer dizer, nunca mais consegui olhar para a pessoa, cada vez que olho para a pessoa, penso: este tipo não tem um livro em casa. Bom, mas é o último lastro que tenho contra o futuro e a tecnologia.

Eu acho que os livros são importantes. E acho que a educação livresca, não estou a falar de educação literária, não confundamos os termos. Ler livros não é o mesmo que ler literatura. Nós podemos ler livros. Vocês lêem livros. O livro é o suporte mais fácil. Vocês não podem ler o e-book. O e-book foi um insucesso absoluto. Não podem. Cansa imenso os olhos ler no ecrã. Ler o Moby Dick no ecrã seria ultra cansativo e não se pode levar o computador, como se costuma dizer, para a casa de banho. Não dá jeito nenhum. Nem para a praia. Não dá. Nem para o metro.

Eu vivi em Londres uns anos, as pessoas lêem imensos livros, até são “trash” , não estão a ler o Moby Dick, mas estão a ler livros no metro, durante aqueles percursos de hora, hora e meia, duas horas. E em França, vocês também já devem ter visto, as pessoas estão a ler livros. Ocupar a cabeça. O Borges que é um grande escritor argentino, foi bibliotecário durante anos e todos os dias tinha que tomar um comboio para ir para a biblioteca. Teve um emprego, absolutamente mal pago, de funcionário, durante anos, para lhe permitir escrever. Ele gostava de ser bibliotecário. E andar de comboio para ele, era a grande alegria. Porque toda a gente dizia: como é que ele se aguentou? Aquele emprego, numa biblioteca durante anos e ainda por cima tinha que fazer uma hora e meia de comboio todos os dias para lá e para cá, entre a sua casa e a biblioteca. Ele vivia com a mãe na altura e ele disse: “não, por amor de Deus. Era o melhor. Foi a minha educação. Porque tinha uma biblioteca que era o sítio onde ele gostava de estar e porque no comboio lia, uma hora e meia”. Sei lá se era uma hora e meia, se duas horas. Quando chegava ao fim ficava sempre triste porque tinha acabado o percurso e já tinha que fechar o livro.

E eu eduquei-me assim. E ainda hoje qualquer bocado que eu tenho, vou buscar o livro e nunca saio de casa sem trazer – e vou citar agora o José Pacheco Pereira, a frase é dele, que é: “um livro, um livro de back up, o segundo livro de back up e o terceiro livro de back up, para o caso de os outros se perderem”. E eu também tenho. Tenho um livro. Saio de casa às vezes com 3 livros que é uma coisa perfeitamente absurda. Para o caso de, durante o dia ter 10 minutos. Se vou para um consultório médico, tenho que ter dois livros. Mais um livro de back up. E portanto, este é o meu mundo. Evidentemente que os meus livros são, na sua maioria, literários. Já foram livros de estudo, às vezes, são livros de poesia, de ensaio. Já foram muito livros de filosofia, mas são livros literários. Mas ler não significa ler literatura.

Eu faço parte de um júri da Fundação Luso-Americana, não sei se algum de vocês já sabe desse programa, Journal Marshall Found, que é um programa óptimo para os jovens como vocês, podem fazer um “application form”, preencher um formulário, serem propostos por alguém, e terem a oportunidade de passar dois meses nos Estados Unidos, tudo pago pelos Americanos e de contactarem, nos Estados Unidos, com pessoas da vossa idade que vocês escolhem. A FLAD tem esse programa à disposição dos jovens, os americanos chamam a isto um programa para futuros líderes, mas não é só para futuros líderes, e há muitos que foram aprovados que provavelmente não serão futuros líderes políticos, mas serão certamente líderes de outra coisa qualquer. Todo o processo de apuramento é feito em inglês e, normalmente, são candidatos de grande qualidade, todos eles. E portanto, os candidatos finais são óptimos. Há depois umas entrevistas que cada membro do júri tem com cada um dos candidatos, e apareceu-me este ano um jovem diplomata, competentíssimo, já com curriculum e que estava aterrorizado. Eu percebi que ele estava aterrorizado na entrevista. E eu disse. “mas está com medo de quê? Está com medo de qualquer coisa. Está com medo de não ter lido os livros que eu li.” E ele disse: “para dizer a verdade, é o problema dos livros. É que eu não leio muitos livros”. Eu disse: “está bem. Vamos falar de outras coisas”. Falámos de outras coisas. Ele era um especialista em história diplomática e portanto, o que ele gosta é de história diplomática e é nisso que certamente ainda irá servir Portugal, provavelmente servir a Europa, porque ele é bom.

Quando chegámos à parte dos livros, eu disse: “Então, vamos lá falar de leituras. Que leituras é que você tem?” E ele aqui já na fase do terror, disse: “Olhe, eu vou ser sincero. Eu não faço leituras. Eu não leio. Li o Miguel Sousa Tavares, porque era um best seller. E li outro livro que também era um best seller, mas que já não me lembro qual era. Não li mais nada”. E eu disse: “Espere aí. Você só leu isso em quanto tempo?” “Assim no último ano” “Não leu rigorosamente mais nada?” “Não, claro. Li imensos livros. Mas são livros da minha especialidade. Li livros sobre a Europa e sobre não sei quê. E sobre multilateralismo e sobre o Tratado do Atlântico e sobre não sei quê”. “Então, você leu imensos livros.” “Sim, isso eu li, mas não li”. “Mas não estamos a falar de literatura, estamos a falar de livros. Você leu livros” “Ah isso li. Mas quer dizer, depois só li o Miguel Sousa Tavares”. “Esqueça o Miguel Sousa Tavares, por amor de Deus. Porque livros não são romances. Livros são livros. Porque você quer ser um diplomata. Quer-se especializar em relações bilaterais entre a Europa e os Estados Unidos, tem que ler. Agora, vou-lhe dar um conselho. Você lê livros da sua especialidade, acho muito bem que se auto aperfeiçoe, mas também vai ter que ler livros que têm a ver com a sua especialidade que não são necessariamente literatura, mas que são ensaio e história. Olhe leia por exemplo a extraordinária biografia do Roosevelt que saiu agora de um senhor inglês que por acaso está agora com problemas com a justiça que é o Conrad Black, mas o livro é magnífico. Se você gosta de história política…”

E dei-lhe um mapa de leituras. Disse-lhe “Tem aqui 15 livros que saíram nos últimos 6 meses que você gostará decerto de ler. Não são do Miguel Sousa Tavares, não são literatura, não são best sellers, mas são livros importantes para si, alguns certamente você vai achar imensas coisas de que gosta e vai-se divertir e vai aprender, sobretudo. As biografias, as grandes biografias de líderes políticos ensinam-nos sempre muito. A biografia de Roosevelt é um livro extraordinário, é um calhamaço que eu li”. E ele ficou muito grato e disse: “pois é que eu, a literatura e tal…”. Eu disse: “Bom, a educação literária…”

Primeiro ponto: o livro não vai desaparecer como suporte, não vai. Segundo: a educação literária não é uma educação, é uma educação artística. Não é uma educação democrática. Depois do 25 de Abril em Portugal criou-se o falso conceito (e é por isso que as cabeças andam todas baralhadas), de que quem não lê literatura é inculto, é burro, é uma besta e não tem capacidade para nada. O que deitaria abaixo imensa gente que a gente conhece. Que não leu muita literatura, nunca se interessou. Leu livros. Mas não leu Melville, não leu as obras completas de Eça de Queirós, não leu Camilo, não leu Fernando Pessoa, pode ter lido fragmentos na escola, pode ter-se interessado vagamente por um livro ou outro, mas não leu muita literatura.

Por qualquer razão, nós achamos que ler literatura é fundamental para se ser uma pessoa, não apenas bem sucedida, mas, com alguma base intelectual. Ou seja, que a literatura faz um intelectual, enquanto que por exemplo uma educação das artes, imaginemos que uma pessoa não gosta de literatura, mas gosta de artes plásticas, sabe tudo sobre Cézanne, o modernismo, Ticiano ou Tintoretto, mas não lê livros. Gosta de arte, ou adore e saiba ver uma partitura de Bach, ou sabe dirigir um concerto do Mahler, ou saiba tudo, saiba a data, o ano da gravação, mas não lê livros, ou lê livros de música. Ninguém acha que quem não é educado como melómano, ou quem não é educado nas artes plásticas ou na filosofia, quem não saiba o que é que o Kant escreveu e nunca tenha lido Kant, que é um ser incapaz. As pessoas acham que, sobretudo, pior do que não ser culto, é presumir-se culto - que é uma coisa abaixo de cão, como vocês sabem, que é a ficha, quando se tira a ficha, depois quando a ficha é mal tirada, é um desastre. E há casos. E isso então é que eu acho abominável. Há pessoas que não lêem, não lêem. É melhor não tirar a ficha. Quando não se leu, não se leu. E não me venham dizer: “ai, eu já li há muitos anos. Vou reler, vou reler”. É sempre mentira, claro. “Ai eu já li os 100 anos de solidão, mas já não me lembro, já não me lembro. Li há muitos anos”. Ninguém tem coragem de dizer, eu nunca li os 100 anos de solidão do Garcia Marquez. Bom. Impunha-se alguma coragem. O pior é que há uma atitude social de reprovação para a cultura que não é uma cultura literária. Por várias razões: sociológicas, de pressão social, economicistas. Sobretudo porque a arte do romance é, como disse, Milan Kundera, a arte europeia por excelência, aquilo que a Europa inventou magnificamente. Embora se diga que o primeiro romance foi escrito no Japão, no século XI por uma mulher. De facto, não foi escrito no ocidente.

O nosso cânone é este: é o ocidental. Vamos lá a ver, nós não somos descendentes de mais nada, a não ser de Roma e da Grécia. E depois da cultura judaico-cristã. O cânone é este, o nosso mundo é este. Não somos nem islâmicos, nem árabes, nem orientais, nem chineses, nem sequer sul-americanos. É deste mundo que nós vimos, é deste mundo que nós descendemos, este é o nosso curriculum. É neste mundo que nós somos educados. E portanto, neste mundo, como a literatura é a arte das artes e foi considerada a arte das artes, ela ganhou um papel de excelência. Há uma frase inglesa que diz: “in all the arts in which we excell the most dificult is writting well”. E não apenas porque a cultura europeia se fez da literatura e da música e da filosofia mais tarde, mas primeiro da literatura, e portanto, quando vocês pensam em Roma e em Atenas, pensam em grandes sistemas políticos, grandes impérios, pensam também em grandes literaturas, pensam na tragédia.

É ali que está tudo, nos gregos, na tragédia, na comédia, a génese do pensamento ocidental é literária. Até porque a filosofia tem como mãe a literatura. A ética tem como mãe a literatura. Porque era isso que eles faziam. Sófocles e os outros. O Cícero. A oratória tem como mãe a literatura. A política tem como mãe a literatura. A literatura foi durante estes séculos todos que temos de ocidente, a nossa “mater” e também o “pater”, muitas vezes. E nós somos os descendentes desse curriculum. E por isso a educação literária se sobrepôs a todas as outras. E por isso também, ela é tomada como sendo um atributo da nata, dos líderes. Isso é visível não apenas na Europa, mas também nos países anglo-saxónicos, que não são tão tributários de Roma e Atenas como nós.

Curiosamente, países como a Inglaterra ou a Grã-Bretanha e a Alemanha põem hoje uma tónica fundamental nos estudos clássicos. E o grego e o latim são ainda, quando se vai fazer um curso a Oxford ou a Cambridge, ou quando se vai fazer um curso numa grande universidade alemã, os alemães mantêm aí as nomenclaturas curriculares latinas, que é extraordinário, Ateneum, gynasium,, e os ingleses mantêm uma tónica fundamental dos clássicos “reading the classics” é a pedra de toque de uma educação inglesa. Ou seja, reading the classics deu os Churchills e essa gente toda. Toda essa elite inglesa dos funcionários do império, dos civil servants, era uma elite que se educou no classicismo. E portanto, isto contribui evidentemente para uma elitização brutal da literatura. Depois, nós, dos países não anglo-saxónicos, fomos os primeiros a enjeitar essa herança clássica e isso fez-se com a modernidade, com os modernos.

Os modernos chegaram e disseram: “eu quero lá saber dos clássicos. Não quero saber de nada. Eu quero fundar uma nova ordem”. Chama-se a isso a idade moderna, que é a nossa, ou pós-moderna; “quero fundar uma nova ordem que nada tenha a ver com o passado. Estou farto dos românticos, dos realistas, dos clássicos. Eu quero fundar tudo de novo”. A arte contemporânea foi por aí e literatura foi também por essa via. Isso contribuiu para que as pessoas passassem a deixar de ter o jugo da educação clássica. Quer dizer, da educação literária como base de todo o conhecimento.

E por isso é que há tantas confusões, sobretudo em países que passaram de um estádio de grande percentagem de analfabetos, como o nosso, para um estádio muito mais razoável de literatos ou da chamada literacia. A confusão instalou-se porque as elites não literárias (vindas da pedagogia ou da sociologia) entenderam que a educação literária era a educação livresca. Mas a educação literária não é a educação livresca. Haverá sempre alguém que gosta de ler literatura e haverá sempre alguém que gosta de ler um tratado de economia, ou gosta de ler um tratado político, ou gosta de ler uma História da Europa, ou gosta de ler um tratado científico. A educação científica não é uma educação literária. A educação artística não é uma educação literária.

A literatura atravessa uma fase particularmente crítica, não necessariamente catastrófica, mas de crise, porque as pessoas acham que é a morte da literatura. Mas não é. Há sempre jovens de 18 anos que querem escrever romances, ou seis que querem encenar o humano. A literatura é uma forma de explicação da humanidade. É uma forma de explicar porque estamos aqui. É, nesse sentido, é como a física quântica e o big bang. Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? Estas são as perguntas da literatura. É uma encenação. Por isso escolhi o Shakespeare e o Macbeth que é um grande tratado político sobre o poder. O outro é o Rei Lear do Shakespeare. São dois tratados políticos, transcendem muito a literatura porque têm lá tudo: a política, a ética, a filosofia, tem lá tudo. E aprende-se muito ali. Quem não aprender pelo lado literário, aprende pelos outros. E portanto, são tratados de aprendizagem. Mas a literatura está numa fase em que se pensa, enfim, que o melhor já foi feito, que os modernos rasgaram tudo aquilo que havia para rasgar e que o século XXI é um século tecnológico, científico. E provavelmente até é. E agora, para tentar preservar uma arte contra a ciência, seria a arquitectura. A arquitectura de facto, é uma das grandes artes e provavelmente será a grande arte do século XXI. Mas ainda não sabemos, os livros ainda estão a ser escritos. A tecnologia e a ciência são hoje educações específicas, altamente especializadas, importantíssimas. É por aí que o homem está a evoluir. Não é bom nem é mau. Não significa nada. São períodos da história da humanidade. Mesmo que o livro desaparecesse, meu Deus, se Roma e Atenas e Esparta e o Egipto, civilizações inteiras desapareceram……….

(UM MINUTO INAUDÍVEL NA GRAVAÇÃO)

Cem milhões de anos... Imaginem há quanto tempo é que nós estamos cá. E a barata de há cem milhões de anos é absolutamente igual - desmentindo Darwin - à barata de hoje. É um ser perfeito. É um tanque de guerra. E, diz-se, que se houvesse um holocausto, um meteoro, o que quer que seja, a barata sobreviveria. Porque é um animal que (apesar de não ler Moby Dick, RISOS), sobrevive a tudo. O nosso tempo necessariamente acabará, não nos compete a nós interrogar-nos sobre isso. Não nos compete a nós interrogar-nos a não ser aos filósofos.

Os filósofos interrogam-se sobre essas coisas mas os cientistas também. É como interrogar Deus. Interrogar Deus e o tempo, são as grandes questões. A literatura interroga a extinção, a morte, Deus, o tempo, todas as grandes questões. Mas a educação literária é uma escolha. E pode ser uma escolha ensinada. E este é o meu último ponto. Não vale a pena obrigar ninguém a ler Os Maias, a ler Saramago, Pessoa, ou o que quer que seja, se não se souber ensinar a amar esses livros. Eu, como autora, se daqui a trinta anos tornarem um livro meu obrigatório, sei que é a minha morte. Porque isso é o desamor.

Tudo o que é obrigatório na arte traz o ódio. Não se pode ensinar ninguém a ouvir Bach obrigando-o a ouvir Bach. Não se pode ensinar a ninguém o prazer, o enorme prazer, por exemplo, que me dão a mim os livros e a música - sem se ensinar a amar essas coisas. (PALMAS)

Ninguém estes anos todos se preocupou com isso. O que havia a fazer com a educação literária em Portugal era educar os professores. Educar os professores de literatura. (PALMAS). Coisa que eu já disse. Já tive em três comissões com Ministros da Educação em que todos tentam reformar o curriculum e ninguém consegue. A generosidade das crianças e dos jovens – é o tempo da inocência que é ainda o vosso - é total.

As Universidades de Terceira Idade são também uma coisa incrível. O que aquelas pessoas querem aprender.

Portanto, acho que é preciso ensinar a amar. E nunca se sintam diminuídos porque não leram nem o Moby Dick, nem os Cem Anos de Solidão. Mas leiam os livros de que vocês precisam para crescer intelectualmente. Para poder trabalhar o neurónio. Não se sintam nunca subestimados porque não leram o best-seller do Verão. Mas sintam-se subestimados se naquilo que escolheram, não tentaram aprender o máximo com os livros.

E agora vamos conversar. (PALMAS)

 

Carlos Coelho

Cada um de nós tem a sua motivação na vida e persegue alguma coisa. Se vocês perseguirem a sobrevivência da espécie, de acordo com a Dra. Clara Ferreira Alves, deveriam ser baratas: não saberiam ler (RISOS) e não teriam este problema do gosto da leitura (RISOS). Vamos ao ciclo das perguntas.

É a vez do Grupo Laranja, através da Sara Graça.

 

Sara Graça

Boa noite. Dra. Clara Ferreira Alves, a minha pergunta é a seguinte,

 

Clara Ferreira Alves

Não me trate por doutora, por amor de Deus.

Sara Graça

Clara (RISOS)

Clara Ferreira Alves

Sim, Clara.

Sara Graça

Se tivesse que escrever uma crónica para amanhã, qual seria o título?

Clara Ferreira Alves

Para amanhã?

Sara Graça

Sim.... Sem ser a Pluma Caprichosa, claro... Já deve estar escrita.

 

Clara Ferreira Alves

Para amanhã, não sei. Olha que pergunta... Que pergunta complicada. Os meus títulos começam sempre com um artigo definido - O, A - raramente fujo a isto. Não gosto de títulos explicativos. “A barata”, acho que vou escrever sobre a barata, justamente. (RISOS)

O ser perfeito. Já pensei escrever uma que se chamava “O animal perfeito”, que toda a gente acha que é o homem. Porque tem inteligência, lê livros, e faz todas estas coisas. Mas a barata é um animal perfeito. Pronto, provavelmente seria “O animal perfeito”. (PALMAS)

Perfeito não significa bom nem melhor, nem óptimo. Perfeito significa que tem tudo aquilo de que precisa para sobreviver que é uma coisa que nós não temos. E a barata aprende. Eu sei das lutas que tenho com baratas. (RISOS)

Já morei numa casa, quando era aluna universitária, onde caíam baratas do tecto. E a barata, além de ter uma agilidade absolutamente extraordinária, é um tanque de guerra. Vocês sabem que a Bayer todos os anos inventa um Baygon novo para as matar, mas elas comem o Baygon e tudo o que não as mata, engorda-as. Torna-as mais fortes. (RISOS). Elas digerem o Baygon e passam a resistir ao Baygon. E a Bayer vive neste horror de saber que um dia não conseguirá.

Noutro dia tive uma conversa sobre baratas com um Engenheiro da Câmara Municipal. Fiquei fascinada com o que ele me dizia: “sabe, isto é uma barata africana”. E eu dizia: “não, não. A africana é a que vem nas caravelas portuguesas. É uma coisa que nós importámos de África”. E ele disse: “não… há uma enorme cá em Lisboa. Uma barata enorme. Mas é um bicho deste tamanho com asas e que voa. Tem uma vulnerabilidade como o Aquiles. É fotofóbica. Morre quando o sol nasce, é como os vampiros. Mas à noite, com o calor, ela vem”.

Eu moro ali na zona do Túnel das Amoreiras. Houve ali uma emergência de baratas nos últimos meses, imensa, e eu falei para o Vereador Pedro Pinto e disse-lhe: “temos aqui baratas à porta que nunca mais acabam”. E então tive uma conversa sobre baratas. Aquele túnel, o ecossistema, Lisboa, está assente sobre baratas, água e ratos. Isto é absolutamente verdade. (RISOS)

Não está assente sobre terra! Lisboa está assente sobre pilares de madeira, rios subterrâneos, e bichos. E tudo isto vive em perfeito equilíbrio. É preciso não chatear muito os bichos. E os bichos, naquele calor todo de princípio do verão, começaram a aparecer. As baratas enormes voadoras. E eu nunca tinha visto uma barata daquele tamanho. É um baratão monstro com asas (RISOS).

“É a barata africana?”, e ele disse que não. Era a pior de todas - a barata americana. (RISOS E PALMAS)

É a mais forte. É a que aprendeu mais em menos tempo. E é o maior couraçado. É mesmo. É a barata americana. Não estou a ironizar, é um baratão. Vocês não imaginam. (RISOS E PALMAS)

“A segunda melhor é a germânica”, (RISOS), disse-me ele.

 

Carlos Coelho

Bem, Grupo Verde, Maria Fernanda Azóia.

 

Maria Fernanda Azóia

Boa noite Clara Ferreira Alves. Eu ficava aqui a noite toda a conversar consigo.

Não sei se a concordar, se a discordar, se a rebater argumentos, mas ficava. Eu sou professora de Português. E numa aula didáctica de Literatura, com o Prof. Fernando Pinto do Amaral, li uma coisa que me ficou: “eu não li os clássicos às escondidas, debaixo da almofada, com a lanterna acesa”. Estou a reportar-me a uma Pluma Caprichosa com alguns anos.

Felizmente a minha geração já pode ler os livros que quiser. Já não é obrigatório ler só Uma Família Inglesa do Júlio Diniz. Já se pode ler Eça sem problemas, Camilo Castelo Branco sem problemas. Ouvimos aqui dizer que ler é fundamental. Nós somos uma geração que felizmente pode ler tudo. Se ler é fundamental e é um instrumento de construção cultural, é pela leitura que também se avalia a cultura. E a cultura portuguesa está pelos dias da amargura. Ou pelo menos será uma cultura razoável, porque a nossa literacia já não é muito má. É muito mais razoável como acabou de dizer.

Em Portugal, qual é o estado da cultura. Andaremos pelos dias da amargura?

Só mais uma coisa. Se o seu colega universitário, Santana Lopes, a tivesse convidado para Ministra da Cultura, que medidas tomaria para inverter este caminho da Cultura Portuguesa?

 

Clara Ferreira Alves

Bom, quanto à última pergunta não posso responder porque seria altamente deselegante para a actual Ministra da Cultura. Há um mínimo de boa educação que me impede de comentar esse tipo de coisas, ainda por cima porque a actual Ministra da Cultura leva só dois meses de funções.

Mas também não acho que essas coisas dependam de Ministérios e sobretudo não dependem do Ministério da Cultura, dependem do Ministério da Educação.

Não podemos estar sempre a pedir responsabilidade aos políticos. Se nós não temos energia, convicção, vontade de aprender, não é o Estado que nos vai dar vontade de aprender. O que é que um Ministro vai fazer de uma pessoa que não quer ler, que não quer aprender, que não quer estudar, que se está nas tintas, que quer ver MTV o dia todo, e estar deitada no sofá? Certamente nenhum Estado ou político o vai educar. E não lhe compete. Há uma parte em que são os professores - têm uma função fundamental – de ensinar a amar. Há uma parte que também é curiosidade, a energia e o despertar intelectual, que é uma coisa que existe nos jovens.

Há jovens que se estão nas tintas. Haverá sempre loosers. Não somos uma sociedade igualitária, como vocês sabem, a grande ilusão da esquerda. Não apenas da portuguesa, mas de todas. O António Barreto escreveu há poucos dias um artigo sobre isso. Ele disse que dadas as mesmas condições de acesso, toda a gente se comporta da mesma maneira.

Não é verdade. Se você puser vinte alunos numa sala, e der a cada um exactamente as mesmas condições de acesso, haverá condições extrínsecas e intrínsecas aos alunos, uns são mais inteligentes do que outros, uns são mais espertos do que outros, uns são mais oportunistas, etc.

E há uns que são sempre melhores do que outros. Nós podemos oferecer uma educação a todos, mas eles não vão aproveitar todos da mesma maneira. E portanto, a grande batalha da democracia portuguesa é a chamada meritocracia. Que é um conceito um bocado americano, mas é verdade. Quem tem mérito sobe.

A meritocracia, como princípio, existe. E deve existir e deve ser premiada, deve ser premiada. As elites não se devem auto-reproduzir. Deve-se ascender às elites por mérito próprio. E as elites não são só culturais, há também as elites empresariais, elites políticas, etc. É preciso haver elites, não é? E portanto, a grande tentação é a de achar que toda a gente chega lá do mesmo modo, da mesma maneira, se o ensino for oferecido a toda a gente. Isto não é verdade.

Primeiro Ponto. Isso foi uma enorme ilusão. Pode até ter sido uma ilusão generosa, dada a terrível desigualdade que existia antes. Em que havia muita gente inteligente e pobre que não conseguia nunca sequer ir para o liceu ou ir para a faculdade por falta de dinheiro. Eu andei em Lisboa com ilustres representantes da minha geração, mas depois passei para Coimbra, acabei o curso em Coimbra e fiquei uns anos em Coimbra, fiz o Mestrado em Coimbra. Havia lá uma grande diferença de alunos (coisa que não tinha em Lisboa), porque em Coimbra apanhávamos toda a gente da Beira Interior, de Trás-os-Montes, do Norte, e portanto eu andei com filhos de grandes empresários do Norte. Alguns deles tinham Ferraris, e ao mesmo tempo andei com filhos de camponeses que tinham um par de calças e que os pais comiam batatas (literalmente) para eles poderem estudar em Coimbra e estarem numa República.

Tive colegas muito pobres, um deles é hoje um grande advogado do Porto, muito rico, e que era paupérrimo. E era uma completa nulidade para o Direito como abstracção. Tive uma vez uma tarde inteira para lhe explicar o que era um Assento do Supremo Tribunal de Justiça. Que ele não conseguia perceber. Mas era um génio absoluto do Direito prático. Quer dizer, é um óptimo advogado. Óptimo. Na prática do Direito, o melhor; na abstracção, na teoria, na filosofia do Direito, tinha horror. E era paupérrimo. Aliás, conseguiu terminar o curso, graças a um professor da Faculdade de Direito que o ajudou monetariamente. E portanto estas questões existiam. Questões complicadas. Comer na cantina.

Eu própria não tinha dinheiro. Nós gastávamos o dinheiro todo nos primeiros dez dias do mês e depois os últimos vinte dias... Lembro-me uma vez que tinha exames e andei a comer Nestum para aí três semanas. Que era o mais barato. E estava tão enjoada de Nestum. Acho que ainda hoje não posso ver um pacote de Nestum à frente. Porque só comia Nestum. Para me alimentar. Fazia directas. E portanto havia ali de tudo. E depois havia os meninos que andavam de Ferrari, tinham imenso dinheiro e pagavam os jantares a toda a gente. E sou amiga de uns e de outros.

Vi gente pobre, com muito mérito, que é hoje gente com uma carreira extraordinária. E vi gente de muito boas famílias com muito dinheiro que se perdeu completamente.

Um deles uma vez encontrei-o já em plena decadência a vender batedeiras Moulinex numa feira em Santarém. Não conseguiu acabar o curso, estava sempre a prescrever. E era de uma família endinheirada. E ficou pelo caminho. Tinha todas as vantagens. E portanto haverá sempre diferenças.

(Eu estou a dar uma dimensão maior ao seu problema da cultura porque eu não acho que a cultura portuguesa esteja de rastos, de maneira nenhuma). Portanto, cada um faz de si aquilo que pode e quer. É preciso dar o mínimo de condições. Isso é preciso garantir. É preciso ensinar. É importante. Os professores são fundamentais. É preciso ensinar a amar. É preciso dar um mínimo de condições para que não haja rejeitados do sistema que não tiveram acesso. Isto é tanto do sistema de educação como o sistema tecnológico.

Mas depois a performance nunca será a mesma. Nem nunca pode ser a mesma. E haverá sempre artistas. Haverá sempre políticos, advogados, economistas e pedreiros. E mecânicos. E gente que não quer estudar. Isto não é desonra nenhuma. E isto não faz deles seres mais estúpidos, ou menos inteligentes. Há pessoas que ficam pelo caminho.

Esta premissa, curiosamente, é comum à esquerda e ao “thatcherismo”. A esquerda achava que dadas estas condições toda a gente tinha uma performance. E portanto o mundo avançaria glorioso, os amanhãs que cantam, a grande utopia histórica era que se toda a gente tivesse a mesma coisa, toda a gente seria perfeita. Isto deu o que deu no Leste…, bom, não precisamos de perder mais tempo sobre isso nem de gastar mais cera com esse defunto.

Depois o Vargas Llosa, quando foi candidato à presidência do Peru tentou aplicar isso no Peru, que era o último sítio do mundo onde isto podia ser aplicado. Depois tivemos essa conversa, há pouco tempo. Ele próprio reconheceu que estava deslumbrado pelo “thatcherismo”. Era a mesma coisa. A Mrs. Thatcher, sendo filha de um merceeiro e tendo-se elevado à sua custa e tornado numa grande política e grande primeira-ministra, tinha também a teoria das mesmas condições. E acaba-se com o welfare state, acaba-se com o Estado Providência. Dadas a todos as mesmas condições, toda a gente tem que correr. Mas esqueceu-se que haverá sempre uns que precisam de muletas. Há sempre os coxos.

E o Estado está lá para isto, basicamente. Para os coxos. Para dar o acesso mínimo para os que não podem. E para os que não querem. Esses depois desistirão naturalmente. E têm que ser absorvidos. A sociedade tem que os absorver. E depois há os que continuam a caminhar. Evidentemente que isto é injusto. Mas a sociedade é fundamentalmente injusta. E imperfeita. A barata é que é perfeita. Provavelmente a sociedade das baratas é uma sociedade justa. A nossa não é justa. Não é justa. Mas não tem necessariamente que ser imoral.

Falemos agora da cultura portuguesa. A visão que usualmente se tem é que “isto não presta”, “é um lixo”, “as pessoas são cada vez mais estúpidas”, “não lêem livros”, “os políticos não prestam”, etc. É sempre uma visão de catástrofe. Os gregos agora organizaram os Jogos Olímpicos e eu vi um ensaio na Time duma grega que dizia exactamente aquilo que nós portugueses dizemos: “conseguimos fazer os Olímpicos. Tudo correu bem. Não houve atentados. Temos uma dívida enorme, mas correu tudo bem”. Mas, exactamente como nós, eles também achavam que não eram capazes. Têm um discurso absolutamente simétrico do nosso, de auto-flagelação. Simétrico. E são os gregos. Vocês já imaginaram a história? Nós temos os Descobrimentos e eles têm (praticamente) a fundação da humanidade. E portanto os mesmos complexos de inferioridade. São complexos de inferioridade que têm a ver com a União Europeia, esta coisa da “cauda da Europa” - já ninguém aguenta o raio da cauda da Europa!

Vive-se em Portugal hoje melhor do que há alguma vez se viveu. Ninguém discutirá isto. Não me venham com tretas. Em 86 era melhor? Não era. Em 92 era melhor? Não era. Em 97 era melhor? Não era. Cada vez as pessoas vivem melhor. O acesso é mais democrático. Mais generalizado (PALMAS), os jovens são cada vez mais bonitos e mais altos e fazem surf, (PALMAS).

No meu tempo não havia nada. Era a Mocidade Portuguesa e ia tudo para o 10 de Junho fazer a continência. Bom. Portanto não me venham com saudosismos. Aquilo era um horror.

Os jovens hoje são espertíssimos. Têm computadores, aprendem com uma facilidade imensa. É facto que os currículos, na parte da Literatura, por exemplo, falharam - mas isso foi culpa dos pedagogos. Aqueles pedagogos estruturalistas franceses horrorosos que andam a fazer esses currículos há anos. Não sei quem são. São uma gente informe que está lá há anos, que escrevem uns planos de curriculum todos os anos, que eu não consigo perceber. Todos completamente sobre o modelo estruturalista francês e que eventualmente serão um dia removidos.

Eu sou uma anglo-saxónica, portanto tenho horror àquela linguagem. Ninguém percebe nada do que eles dizem. Aquelas propostas: o aluno deve, “não sei quê”. Mas depois não são capazes.

A melhor personagem-tipo queirosiana é um de um romance póstumo: Tragédia da Rua das Flores. Que é o Camilo Serrão ou Camilo Gorjão. Tinha dois nomes, nas duas versões. Que é uma personagem fabulosa. Ele estava para pintar o quadro de uma senhora. E diz, hoje vou pintá-la com veludos, amanhã vou pintá-la com “não sei quê”. E a certa altura uma das personagens do Eça, que é o Eça a falar, diz “e o pobre sabe toda a história da pintura e é incapaz de pintar uma tabuleta”. E os pedagogos sabem toda a história da pedagogia e são incapazes de fazer uma pessoa apaixonar-se por aquilo. É uma tristeza.

Portanto, são eles os responsáveis. Haveria que reformar essa gente toda. Depois os professores, eles próprios, estão dispostos a serem ensinados. Na Literatura, há que levar mais escritores às escolas: é sempre um êxito. Os escritores falam de livros de uma maneira apaixonada, coisa que os professores não fazem. Ensinam de outra forma.

E quanto à cultura portuguesa, não sei. Toda a gente diz, “ai, o Estado não dá, não há dinheiro, a recessão, bla, bla, bla”. Porém, abrimos um cartaz de fim-de-semana de qualquer jornal e vemos a quantidade de coisas que há para fazer ao fim de semana. Se eu quiser ser, como dizia o Miguel Esteves Cardoso, um gremlin cultural, um papa-cultura, uma pessoa que vê todas as exposições, todos os concertos, está sempre na Fnac a ver as novidades e tal, teria um milhão de propostas! Um milhão!

Mas eu não posso ser um gremlin cultural, evidentemente, porque sou uma especialista.

Para poder ler, eu não posso ir aos concertos todos. Não posso saber o que é que se passa na música contemporânea. Sei lá, há coisas que eu perco. Não posso ir a todas as exposições. Não posso andar no mundo da cultura. Nem ninguém anda. Só os malucos. Só os seres verdadeiramente incultos e sociais conseguem ir a todas. Que os seres cultos estão a fazer as suas coisas.

Mas há um milhão de propostas. Um milhão de propostas. E depois toda a gente diz que não há dinheiro. Veja-se cá em baixo os patrocínios. Os privados ainda não dão o dinheiro que podiam dar.

A lei, o mecenato em Portugal não está a funcionar bem. Os privados portugueses estão a dar muito mais dinheiro para coisas neste momento no Brasil, que têm a ver evidentemente com a língua e a literatura portuguesa. O maior prémio brasileiro de literatura é pago pela PT. Onde está o Chico Buarque na final e estão outros. Quer dizer, nós estamos a pagar coisas, os privados estão a pagar coisas importantes, e não as pagam às vezes em Portugal porque não há condições fiscais, ainda não foram feitas as revisões legislativas suficientes, para eles terem os benefícios que lhe advêm desse patrocínio.

É uma luta importante, por exemplo, para Ministérios da Cultura. É que o mecenato se torne mais activo. Porque os privados têm dado muito dinheiro. Praticamente hoje não se faz nada, o restauro de um quadro, por exempo, sem que haja um privado. E vejam só os bancos portugueses, os grandes bancos, a quantidade de coisas que eles já fizeram. A Culturgest, da Caixa Geral de Depósitos, a Fundação BCP, Serralves, que foi muito apoiada pelo Artur Santos Silva e o BPI.

Eu acho que nunca em Portugal se deu tanto dinheiro à Cultura, e vai continuar a dar. Tudo depois o que há é um agiornamento político entre os dois partidos, que utilizam isto como arma de arremesso. Um diz: eu dei mais, tu deste menos

Há dois discursos de que eu sou profundamente contra. Um é criticar as pessoas porque elas não leram o Melville ou não viram o “Leopardo”. E eu escolhi o Leopardo, não por ser o meu filme favorito mas porque é um filme profundamente literário e profundamente político. É outro tratado da política. Um príncipe siciliano que chegou ao fim o seu tempo. Cada pessoa que vê chegar o seu tempo ao fim diz: depois de mim será pior. É esse o discurso sempre, evidentemente. É o discurso do fim da aristocracia na Itália quando vem o Garibaldi fazer a unificação. É este o tema dos romances do José Saramago: depois de mim o dilúvio. As pessoas têm uma enorme tendência a achar que o tempo acaba com elas, não é.

O próprio Mário Soares já participa deste discurso, não é? Isto é natural. Os grandes têm este discurso. É um discurso de apropriação da História. Que é natural. Que é natural. Reparem: eu não estou a criticar. Porque o Mitterrand tinha, o Churchill tinha. Os grandes líderes, os grandes escritores, os grandes poetas têm uma grande tendência para achar que a história acaba. Porque é terrível pensar que o mundo continua depois de mim, ou seja, deles. Esse é um sintoma de apropriação: “depois de mim será pior”. E o príncipe siciliano diz: depois de nós, nós somos os últimos, as panteras e os leões. Depois virão as hienas e os chacais. Depois de nós, virão pior do que nós. E nós somos o sal da terra. E esta coisa do sal da terra (PALMAS), vocês já ouviram um milhão de vezes. O sal da terra vem daí. Vem da Bíblia e vem daí. Estão a ver porque é que às vezes serve ler livros. Próxima pergunta.

 

Carlos Coelho

Sandra Ribeiro, Grupo Bege.

 

Sandra Ribeiro

Boa noite. É com prazer que a recebemos aqui, alguém que não está ligado directamente à política mas, neste caso, à cultura e ao jornalismo. Primeira pergunta: num país que é acusado de ler pouco, embora já tenhamos assistido a uma grande evolução nesta área, como vê o fenómeno Código Da Vinci? Em segundo lugar: como vê o actual panorama de jornalismo português e de que forma ele contribui para a qualificação da língua portuguesa e dos portugueses? Obrigada.

 

Carlos Coelho

Muito bem. Grupo Encarnado, Milton Sousa.

 

Milton Sousa

Boa noite. Muito obrigado mais uma vez pela sua presença. A minha questão tem a ver com cultura, desenvolvimento social e económico. Mas estou a falar da cultura em termos dos nossos comportamentos. E a questão é a seguinte. Será que podemos aspirar ao desenvolvimento económico e social no actual enquadramento de mentalidade? Ou vamos ter que passar por uma pequena revolução cultural que mude as mentalidades? Quero eu dizer, temos que deixar de ser portugueses para desenvolver Portugal? Obrigado.

 

Clara Ferreira Alves

O Código da Vinci é um enorme best-seller. Sempre houve e haverá best-sellers. É um best-seller muito bem feito, devo dizer. Tem os mecanismos todos de adição e subtracção para nos manter atentos. Eu acho óptimo ver as pessoas ler o Código. Acho óptimo ver pessoas a ler livros em toda a parte. Eu própria li o Código da Vinci e não tenho nada contra. Antes disso havia o John Grisham e outros. Este é até um best-seller particularmente bom. Acho bom que se vendam.

O Miguel Sousa Tavares vendeu 150 mil exemplares do Equador. Acho bom tudo o que seja ler livros, que não sejam objectivamente trash, (e mesmo dos maus livros às vezes se aproveita alguma coisa).

O Código Da Vinci não ameaça nada nem ninguém. É um fenómeno editorial como o Harry Potter, que pôs as crianças a ler livros de 700 páginas e portanto nesse sentido é um livro óptimo, bem feito, tem os ingredientes todos.

É como um filme. Ainda ontem estive a ver na televisão um thriller até às duas da manhã, o Coleccionador de Ossos. Não é propriamente cinema de arte, mas, caramba, é um filme bestial e eu diverti-me imenso. E portanto ler livros também não é só ler as tragédias gregas. É ler Códigos Da Vinci e outras coisas e tudo o que seja ler põe o neurónio a trabalhar. Portanto, é bom.

A segunda pergunta sobre o jornalismo. A fase em que estamos tem alguns riscos e portanto eu ainda não falei aqui numa coisa. A grande ameaça à nossa integridade intelectual vem das televisões, do tablóide, do sensacionalismo. E, e o jornalismo de televisão degradou-se terrivelmente. O jornalismo escrito tinha alguns punhos de renda em Portugal, nunca ousou fazer determinadas coisas. Eu sei que a televisão é importante. Sei que o canal único é uma coisa horrível. Não se pode ter um único canal. Tem que se ter um mercado competitivo. E tem que se ter televisões que competem entre si pelos diversos públicos. Mas a degradação, a pauta, a fasquia foi colocada muito em baixo.

Isto não é um fenómeno português, como vocês sabem, é um fenómeno europeu e americano. Mas em Portugal atingiu o jornalismo. Porque em Inglaterra, por exemplo, o Big Brother nunca contaminou o jornalismo sério inglês, a BBC, a grande reportagem - os melhores jornais do mundo são ingleses e americanos, não há dúvida nenhuma.

Mas isso não contaminou o grande jornalismo. Porque há muito dinheiro. Os grandes jornais, (no caso da BBC é o Estado) têm por trás grandes suportes financeiros, que lhes permitem ter códigos de ética e qualidade. Eles às vezes quebram-nos: o New York Times e o Washington Post fizeram agora vários meas culpas, mas mantêm-se num grande padrão de qualidade.

Em Portugal houve uma contaminação porque somos 10 milhões de pessoas, somos poucos, o mercado é pequeno, toda a gente se conhece, e houve uma enorme contaminação. Não da televisão, mas da televisão tablóide, baixa, sensacionalista, e abjecta para o jornalismo. E, houve outro fenómeno: de repente, todos os jovens portugueses queriam estudar comunicação social. As universidades privadas aceitaram-nos todos. Fizeram um milhão em propinas. Quem não entrou noutros cursos foi para comunicação social. Toda a gente acha que pode ser jornalista, que basta aparecer em frente de um microfone, e dizer: “Então, diga lá”.

E depois isto dá aqueles casos patéticos, na tragédia de Entre-os-Rios, com aquela gente a chorar, e jornalistas a perguntar: “então, como é que se sente? Como é que se sente?”. Isto é patético, censurável, e competia às televisões, aos editores, aos directores, à parte editorial das televisões velar para que isto não acontecesse. Educar os meninos e as meninas para serem jornalistas e não cangalheiros. Jornalismo de cangalheiros e de voyeurs não me interessa, não é jornalismo, eu tenho por ele o maior e o mais absoluto desprezo. E não vejo telejornais de duas horas, quando o mundo atravessa uma fase particularmente complicada e se abre com uma criança que teve um acidente no baloiço em Vila Nova do Conde. (PALMAS). E portanto, isso, isso tinha que ser reprimido internamente e tinha que ser reprimido externamente porque há uma Lei da Televisão que não é aplicada. (PALMAS)

Se a Lei da Televisão fosse aplicada, essa gente há muito tempo que tinha tido uma trave em cima. O serviço público de televisão é justamente importante que exista para isto. Para dar uma alternativa. Um bom serviço público de televisão, é a tradição da BBC e da PBS americana. Não para competir comercialmente, mas para nos dar uma alternativa.

Agora, é muito difícil ao serviço público, sem entrar nas regras do comércio, competir com isto. Porque isto é, de facto, a rascaria. O Sindicato dos Jornalistas, como vocês sabem, não existe. É um grupo de idiotas que está lá há anos, e que passam umas carteiras, fazem uns comentários deontológicos, e portanto são uma vergonha. Isto podem citar em toda a parte. É uma vergonha. Se eu quiser a minha carteira profissional revalidada, tenho que pedir autorização a uma gente que (muita dela) não tem sequer categoria para dizer qual é a minha deontologia. É uma tristeza. Mas os próprios organismos sindicais deram no que deram. Ninguém quer ir para lá, e portanto entrou-se num clima de permissividade, e de lucro. E o jornalismo não é sobre lucro, é sobre informação. Não é entertainment, é informação. (PALMAS)

Quanto à pergunta da cultura. Quando o Mário Soares disse que queria pôr-nos na Europa, (vocês eram muito jovens, não se lembram), houve uma reacção brutal em Portugal. As pessoas achavam: “que horror, mas agora vamos para a Europa, nós não temos nada a ver com essa gente, nós queremos ser iguais aos mexicanos e aos brasileiros, aos russos, aos soviéticos, e nós queremos ser iguais ao Terceiro Mundo, aos africanos. Temos que fazer a nossa união com a América Latina, com África e (nalguns casos), com os russos”.

Bom. Isto tinha também um agiornamento político. E o Soares teve que vencer. Foi um grande desígnio, convencer a malta. “Vamos fazer parte da Europa. Vamos integrar a Europa”. Ninguém percebia nada do que era isto. E as pessoas escreviam textos absolutamente inacreditáveis a dizer que a Europa nos ia roubar a identidade, destruir a alma portuguesa, acabar com o Camões, matar o Fernando; bem, a quantidade de imbecilidades que se escreveram, todas elas catastróficas.

É sempre a mesma coisa. O novo, a ruptura, o conflito, o futuro mete sempre medo. Sobretudo se é diferente do presente. É como o euro: “não vamos conseguir adaptar-nos ao euro, vai ser uma confusão, etc”. Mas toda a gente se adaptou. A capacidade portuguesa de adaptação é extraordinária. Nós recebemos um milhão e tal de retornados de um dia para o outro e nem demos por isso. Travámos 13 anos de guerra colonial. Vejam bem o que a América fez com o Vietname. E nós? Quantos mortos é que nós tivemos em África? Cá estamos. Portanto, nada nos faz perder substância. O facto de sermos hoje apenas um rectângulo e não sermos um império não nos fez perder substância. Sabemos muito bem onde é que estamos. Somos um bocado trapalhões. E deixámos uma herança de trapalhice na África e Brasil. Que é óbvia e que até é engraçada, às vezes. Somos trapalhões mas estamos sempre a aprender e somos cada vez menos trapalhões, devo dizer.

Portanto, há um padrão de qualidade na sociedade portuguesa que é cada vez mais visível. É cada vez mais visível. Isso tem a ver justamente com o facto de nos termos ido educar muitas vezes lá fora, termos partilhado experiências.

Tudo o que eu queria quando tinha 12, 13 anos, era ir a Londres. Lembro-me perfeitamente. O meu primo tinha 15, 14 anos e na altura as crianças do sexo masculino que saíam do país depois dos 15 anos de idade, ficavam fichadas e tinham que voltar a Portugal para cumprir o serviço militar. Ou seja, os que não desertavam ou os que não fugiam, ou os que não se exilavam, iam para um colégio estrangeiro, mas depois tinham que voltar. Bom, e o meu primo foi estudar para um país estrangeiro. Saiu de Portugal e foi-se embora porque um tio meu fez a guerra de África, em Moçambique, Operações na Tanzânia, Minas e Armadilhas, e voltou completamente enlouquecido de quatro anos de guerra. E isso causou uma enorme ferida na família. Era o meu tio mais novo.

Era muito bonito. Era um jovem esplendoroso. Foi punido por andar metido em coisas em Coimbra. Associações de não sei quê. Foi punido com a ida para África. Viu morrer os homens da Companhia dele. Viu morrer o melhor amigo. É um bocadinho Apocalypse Now: voltou destrambelhado e doente, com febres reumáticas, meio morto. E portanto o meu primo saiu de Portugal para não fazer o serviço militar. Educou-se na América. Vive hoje em Silicon Valley. É um matemático de computadores. E era um miúdo brilhante em Matemática. E tornou-se americano. É um americano puro. Até tem 1,90m. E nunca mais voltou a Portugal. Tornou-se um americano. O 11 de Setembro para ele foi uma coisa…, é super americano. É alguém que foi para lá. E portanto ainda é mais americano do que os americanos.

Como vêem, as nossas experiências mudam-nos, não é? Este é um período magnífico. De liberdade. Ninguém é obrigado a nada. Ninguém é obrigado a ir para África morrer e matar? É um período maravilhoso. E em que é que nós deixámos de ser portugueses? Em nada. Somo-lo absolutamente. Nós deixávamos de ser portugueses quando éramos obrigados, sim, a ir procurar asilo, abrigo e amparo noutras sociedades, às vezes mais avançadas do que as nossas, que nos abrigaram e protegeram, e aí sim, é que nós deixámos de ser portugueses. Deixámos de ser portugueses quando tivemos que emigrar por sermos miseráveis e pobres. O caso do meu primo. Hoje não emigramos. Somos um país que recebe. Somos o mais portugueses possíveis. (PALMAS)

 

Carlos Coelho

Grupo Roxo, Luís Mendes

 

Luís Mendes

Boa noite Clara Ferreira Alves. Antes da pergunta, queria referir que ao longo desta semana utilizámos o computador e a internet, como meio de pesquisa para fazer o nosso trabalho e estudar os convidados a quem íamos fazer perguntas. Lemos muitos artigos seus. Houve um que nos chamou a atenção.

Era sobre o estudante. Dizia no artigo que há perda de algumas qualidades nas pessoas, o esforço, a atenção, a concentração, o trabalho, o mérito de afirmação e inteligência. E dizia que se dava mais valor à cultura de uma imagem física. E dizia também que tudo o que solicite esforço, atenção e faça trabalhar os neurónios, era posto de parte. E que a internet, a televisão, os telemóveis, ajudava a isso. E a pergunta que o Grupo Roxo faz é: acha mesmo que a utilização das tecnologias de informação e de comunicação diminuem o trabalho das pessoas e o exercício mental. Só isso. Obrigado.

 

Carlos Coelho

Guilherme Bandeira, Grupo Castanho.

 

Guilherme Bandeira

Boa noite. Devo-lhe confessar que esta conferência foi a que me suscitou maior expectativa. Não por ser a única conferencista mulher, mas porque admiro muito a forma como escreve. Tenho aqui uma pergunta simples. Acho pertinente, até porque é dirigente da Casa Fernando Pessoa.

Sabendo-se que a produção artística em Portugal é altamente subsidio-dependente, acha que são os artistas que usam os políticos, ou a política que usa a cultura? Obrigado. (PALMAS).

 

Clara Ferreira Alves

É uma boa pergunta. Relativamente ao estudante. Enfim, haveria que ler todo o texto. O texto baseava-se numa experiência que tive agora em São Paulo. E tive uma visão. São Paulo é um país, não é? O Estado de São Paulo tem quase 18 milhões de habitantes, quase o dobro da população de Portugal. Uma loucura. E vi à noite, ao final do dia, muita gente nas paragens de autocarros, com sacos e sacos de livros, que caminhavam para cursos. Chamada a Educação de Adultos. Estudantes trabalhadores.

Porque, de facto, Portugal hoje é uma sociedade de abundância. Nós somos uma sociedade ocidental. A Europa ajudou-nos muito a crescer. Economicamente e não só. E portanto fazemos parte das sociedades de abundância, das sociedades de bem-estar. Com falências, com sub culturas, com graves problemas de bolsas de pobreza, de exclusão, essas coisas todas agora que se inventaram, a exclusão social, etc. Temos pobres, é certo. Mas, temos cada vez menos pobres e somos uma sociedade de bem-estar.

E existe hoje, para os mais jovens, o ensino quase gratuito e universal, compulsivo, o sistema de creches, o sistema nacional de saúde, uma série de coisas que faz com que coisas que não existem em sociedades muito mais complexas como é a sociedade brasileira. Sobretudo no Estado de São Paulo, onde existem enormes diferenças sociais entre ricos e pobres. Há muitos ricos e muito pobres. Toda a favela que cerca São Paulo é uma loucura. Mas, como todas as sociedades de bem-estar, (o protótipo da sociedade de bem-estar é a americana), nós engordámos. Estamos a ficar um pouco balofos. E a deixar-nos estar no sofá mais tempo.

E temos problemas educacionais de curriculum: currículos pouco estimulantes, por um lado, professores pouco estimulados por outro. E também o facto da sociedade nos dar hoje uma gratificação imediata: é aí que entra a internet, os computadores, e tudo o que é visual. Tudo. Mesmo que se aprenda muito, tem um sentimento de imediatismo absoluto. Quer dizer: o que é visual é imediato.

Uma imagem vale mil palavras. Descrever uma imagem implica ler. Implica manejar conceitos abstractos. As palavras são como os números. São abstracções. A linguagem é uma abstracção. A linguagem é uma arte combinatória de palavras, que são entidades abstractas. Tal como a Matemática é a arte combinatória dos números. Com isto podemos chegar onde quisermos. À Física Quântica, ao Big Bang, ou ao Aristóteles.

Ler é ir segundo uma arte combinatória. Ajuda a fazer trabalhar o cérebro. Agora, os computadores, videogames, todo o mundo esplendoroso, as playstations, os gameboys - tenho um filho pequeno e sei o esforço. Ando há um mês a tentar que ele leia a Guerra dos Mundos e ele assim que pode vai a correr para a Playstation, jogar a guerra dos mundos. Ele já não lê a Guerra dos Mundos. Ele joga-a. E portanto aquilo dá uma gratificação imediata, rápida, e tudo aquilo que não exige, anula o esforço e a atenção. E é por isso que as crianças resistem cada vez mais à leitura.

Vocês já não são crianças, mas os miúdos estão muito mais hoje dentro dos videogames e dessa estética. E o próprio cinema deles está. Basta ver o Kill Bill, do Tarantino, que é já um cinema vindo completamente dessa escola. O cruzamento do classicismo com o videogame.

E já não me refiro à vossa geração. Mas com essas gerações que vierem a seguir vai ser muito mais rápido. O acesso é mais rápido. A informação é mais rápida. A informação não é conhecimento. Estamos na sociedade mais informada que até hoje esteve no planeta. Vamos continuar a estar, se não acontecer nada. Mas, ao mesmo tempo, neste momento, temos um problema com a aquisição de conhecimentos. A aquisição de conhecimentos é um processo lento, complexo, que exige devoção, atenção, esforço. E nós estamo-nos a esquecer disso. O segundo ponto é que a escola é hoje vista como um rito de passagem. Ou seja, eu para ser isto ou aquilo, “que chatice”, tenho que ir fazer um raio de um curso. Tenho que ir para o liceu, depois tenho que ir para a Universidade, depois tenho que ir aturar os professores: é um rito de passagem.

E muitos deles andam aí a dizer que não querem pagar propinas, mas depois têm dinheiro para pagar os CD’s, e outras coisas do mercado juvenil - que movimenta milhões de dólares e euros em todo o mundo, nas sociedades de bem-estar. Como rito de passagem, a escola deixou de ser respeitada. Mas a escola não é um rito de passagem. Não é uma coisa que se tem de fazer para chegar a tal ponto. É uma coisa que está no meio e que é fundamental e sem a qual não se chega bem a esse tal ponto. Que é, para a maioria dos jovens, ser bem sucedido, ganhar dinheiro e ser feliz. Ter uma vida decente. Arranjar um bom emprego. É isto que querem a maioria das pessoas, não é? Portanto, a escola não é um rito. A escola tem de ser respeitada, como o lugar que é de aprendizagem do conhecimento. A culpa, evidentemente, não é só dos estudantes. A culpa também é dos professores. É aquilo que eu digo. A escola foi transformada numa balbúrdia, não é? É uma balda. Se os alunos já podem bater nos professores, como acontece em certas escolas do ensino secundário… Os professores dizem que têm medo de ir para a escola, porque os alunos batem neles. Temos que rever este sistema educacional.

A segunda questão era se os políticos usam a cultura. A cultura foi sempre subsidiada. E continuará a ser. A cultura é, como eu disse, uma actividade que não se paga. Nós teremos sempre isso. Não interessa se a sociedade é mais ou menos avançada. Nos Estados Unidos a cultura é subsidiada. Ninguém tenha dúvidas. Agora: se é subsidiada pelos privados ou pelo dinheiro público, eis a questão! Mas depende-se sempre de subsídios. Um livro não, porque é muito fácil, os escritores não pedem subsídios. Pedem umas bolsas miseráveis. São os menos caros de todos. Mas ter uma ópera, uma grande orquestra, isso é importante. Porque senão deixaríamos de ouvir belos concertos. Pagar a um solista, e até fazer um espectáculo mais popular como o dos três tenores, isso custa dinheiro. Custa muito dinheiro porque aquela gente implica um nível de formação. Gastam-se muitos milhões de dólares para formar uma pessoa. Que é uma ideia que nós não temos na Europa. Os americanos vêm tudo em função do investimento na pessoa.

Por exemplo, aquele prémio de que eu vos falei. Houve uma vez uma candidata que era brilhante mas era uma diletante. Quando perguntávamos o que é que ela queria fazer com o resto da vida dela, ela não sabia. Tão depressa dizia que ia tomar conta da farmácia dos pais, como ia escrever um livro, como ia fazer uma peça de teatro, como se queria casar. Ela não tinha ideia nenhuma. Ela era esperta, era inteligente, lia livros. Mas não tinha desígnio. Não havia nenhuma espécie de desígnio naquela vida. Que não é uma coisa má. Mas o membro americano do júri disse: “o nosso problema é que isto custa dinheiro. Nós estamos a investir. A educação é um investimento económico. E financeiro. E se nós investimos, isto tem que ter um retorno”.

Aqui o retorno é para a sociedade portuguesa. Os americanos têm uma frase que se chama – to give back to the community. Os estudantes na América, os cursos, custam fortunas. Ou têm bolsas porque têm muito boas notas, ou os pais são ricos, ou têm scholarships por mérito desportivo que foi aquilo que o meu primo teve. Porque era muito bom desportista. De resto, a maioria dos estudantes na América, depois, paga o curso. Ou tem empregos durante o curso ou, quando se forma, arranja um emprego e depois paga o curso de volta. Foi isso que a Hillary e o Bill Clinton fizeram. Se lerem as memórias, ela explica. Tiveram aqueles empregos todos, garagens, etc, que o meu primo também teve na América. Arrumou carros, trabalhou em bombas de gasolina, etc. para fazer dinheiro. Coisa que os portugueses não fazem. Porque os pais não acham digno. E depois porque não há um mercado de emprego para jovens em Portugal

A educação custa muito dinheiro, e formar um artista também custa muito dinheiro. Alguém tem que pagar. Nós, se quisermos ter acesso hoje a um grande concerto, com um violino de época, com um Stradivarius, ou com um violino de 1730, por um grande concertista, vocês não imaginam quantas escolas, quantos professores, e quanto é que é preciso para apurar um grande maestro. É uma loucura. Isso custa dinheiro. Isso evidentemente alguém vai ter que pagar. Porque os bilhetes de bilheteira não pagam. Porque se pagassem, nós, hoje, para assistirmos a uma ópera, tínhamos que pagar 70, 80 contos. E não podemos fazê-lo. Portanto, o Estado tem que pagar. E depois os privados têm que pagar e o sistema tem funcionado. Curiosamente os bilhetes da Madonna, o concerto mais caro que se realizou em Portugal até hoje, e custavam cerca de 30 contos, esgotaram numa tarde.

Os bilhetes da ópera a 30 contos, também talvez pudessem esgotar. Quer dizer, tudo tem uma escala. Para umas coisas há dinheiro. Para outras é que não. O que nós não podemos é enjeitar a nossa cultura dizendo – não há dinheiro para a pagar. Não podemos deitá-la fora. Porque se quisermos encenar uma tragédia grega, no Festival de Mérida, aqui ao lado, isso custa dinheiro. A cultura custa esforço e dinheiro. E alguém tem que pagar.

Se os políticos usam a cultura? Evidentemente. É um emblema. E a cultura usa os políticos. Porque sabe que também é um emblema. E por isso, cada vez que mudam os ciclos políticos e os regimes, os tipos que mais protestam contra a mudança de regime, são normalmente também os primeiros que estão lá de chapéu na mão à porta no dia seguinte. E eu já vi. (PALMAS)

 

Carlos Coelho

Vamos agora ao Grupo Azul, ao grupo da casa, António Carmona.

 

António Carmona

Boa noite. Antes de mais o Grupo Azul tem toda a honra de ter sido o anfitrião da Clara Ferreira Alves na sua vinda à Universidade de Verão. Como a hora já vai avançada, vou fazer uma pergunta que penso vai ter uma resposta mais curta. Como explica o facto de em Portugal toda a gente achar que tem capacidade para escrever um livro. É treinadores de futebol, jogadores de futebol, (RISOS E PALMAS), Figuras públicas, ETC. Obrigado. (PALMAS)

 

Carlos Coelho

Grupo Cinzento, José Oliveira.

 

José Oliveira

Muito boa noite. Antes de mais queria agradecer a sua presença aqui na Universidade de Verão. Eu, e certamente o Gonçalo Capitão, agradecemos que tenha dito e afirmado que esta geração é dos altos e dos bonitos. Muito obrigado. (RISOS E PALMAS).

Enquanto cronista, escreve a pensar apenas nos leitores ou também na influência na política. Se pode condicionar a actuação dos políticos. Obrigado.

 

Clara Ferreira Alves

Obrigado. Duas boas perguntas, por acaso. Toda a gente acha que pode escrever um livro em Portugal. Eu acho que em Portugal neste momento há mais escritores que leitores. (RISOS). Absolutamente. (PALMAS).

Durante anos toda a gente tinha um romance dentro de si, não é? A minha vida dava um romance... eu tenho que escrever um romance.

Mas agora não. Agora há livros para tudo. E porque é que isto aconteceu? É o problema da fama e da notoriedade e das televisões. As pessoas começaram a ser famosas por serem famosas. Por aparecerem. A Lili Caneças também já deve ter um livro. (RISOS)

A notoriedade sem mérito substituiu a fama. As sociedades de abundância e de bem-estar têm isso, justamente. Aparece este grupo de gente que circula num certo universo de visibilidade sem nenhum mérito aparente. Excepto esse: o de circularem e dizerem umas coisas de senso comum, e tal.

E as televisões, esse mundo tablóide, colou-se e criou uma indústria. É hoje uma indústria que rende milhões. O mundo da imprensa séria, é um mundo com défices, com problemas financeiros, que não se paga. Ao contrário da imprensa cor-de-rosa, da Maria, da Ana e outra que se chama Ana Ainda Mais Atrevida. Que é fantástico. (RISOS). É um nome inacreditável.

É um mercado das faixas mais iliteratas e iletradas. Um negócio rentável. E nesse negócio criaram-se personagens. E foi inevitável que as editoras fossem atrás e dissessem: “além de criarmos estas personagens, se elas fizerem qualquer coisa? Em vez de darem apenas autógrafos, por que não pô-las a escrever livros?”

E elas escrevem livros. Todas elas escrevem livros.

Eu costumo sempre contar esta história. Quando eu vou à televisão, e vou muitas vezes, (agora vou menos porque estou a escrever e cortei estas idas, que ainda por cima são gratuitas e é uma perda de tempo incrível), há sempre o problema da nomenclatura: Directora da Casa Fernando Pessoa, Jornalista, Cronista, Colunista, etc. E eu uma vez irritei-me imenso com aquilo e disse: “Meu Deus, toda a vida aquilo que eu fiz foi escrever. Tenho um livro de crónicas publicado, agora tenho um livro de contos publicado, espero ainda publicar uns romances antes de morrer, mas há um problema enorme em me definir como escritora. E, no entanto, aparece “Paula Bobone, escritora”. Como é que é? Porque é que a Cristina Caras Lindas é escritora? (PALMAS)

A Paula Bobone escreveu o Manual de Boas Maneiras – como usar o garfo e a faca. (RISOS). E não se babar em frente aos convidados. (RISOS).

E a Paula Bobone é escritora! A Clara Ferreira Alves, o que é que ela é? E eu disse: “isto é extraordinário”! (mas isto também é uma perfídia dos jornalistas que são mauzinhos uns para os outros, de uma maneira geral).

Portanto, todos eles escrevem livros e são escritores e aparecem “as sandálias de prata”, “a margarida de oiro”, o não sei quê, tudo uma loucura e toda a gente escreve livros. E vendem. E autobiografia. Isso também lá fora acontece. O nosso mercado é que é pequeno.

Segundo problema. E depois há gente que diz: “ah, mas eles ocupam todo o espaço disponível nas livrarias”, porque (como sabem) os livreiros e os hipermercados fazem uns escaparates medonhos daquilo. Se o Figo escreve um livro (a mulher do Figo acho que também vai escrever um), fazem uma montra com 40 livros daqueles. E um livro da Agustina Bessa Luís, não está na montra. Eles dizem: “eu não quero agora a Agustina Bessa Luís, não me interessa nada. E nós acabamos prejudicados porque os livreiros disseram: “Epá, eu quero é o livro do Figo, não o da Agustina Bessa Luís”. Pronto. E esse é um problema. O problema da visibilidade e do mercado, que não existe nas grandes livrarias da Inglaterra, ou da América, ou de França, onde há públicos segmentados e diferenciados e livrarias para esses públicos. Em Portugal isso não é verdade. Vendem-se livros na Fnac, vendem-se livros nos hipermercados, e estes dois por junto condicionam o mercado do livro em Portugal, o que é um monopólio. É preciso estarmos atentos a esse fenómeno.

A segunda pergunta era: em quem é que eu penso quando escrevo. Penso em mim, quer dizer, escrever é um acto de enorme auto convencimento, não é? O escritor escreve sobre algo que julga ter algum interesse para ser lido. É um acto de absoluta egolatria. Um escritor é o ser mais egotista que existe. E é por definição. Relativamente à audiência, isso depois ou se tem ou não.

Eu escrevo violentamente. Tenho um modo de escrever violento e contundente, como se costuma dizer. Interessa-me provocar um efeito, não me interessa a escrita branca. Como se costuma dizer na literatura, hapiness writes white. A felicidade escreve branco. Não é esse o meu território, nem na ficção, nem no jornalismo. Nunca foi.

Não estou com panos quentes, não sou boazinha, não sou bem disposta, não sou panglóssica, não acho que o mundo seja uma coisa maravilhosa, não sou a Branca de Neve - sou a Rainha Má. Que era já a preferida do Woody Allen, no filme. Por outro lado, se acho que isso influencia os políticos? Eu acho que um político que se deixa influenciar por uma crónica de jornal é um idiota. (RISOS).

Acho que eles se irritam, às vezes, outras vezes comentam, outras vezes gostam, têm uma reacção de leitor. Às vezes são meus amigos. Podem ter uma reacção mais epidérmica, mais complicada, porque se ofenderam. Por qualquer razão. Bom, mas isso é mais ao nível pessoal das relações, não é? Mas isso não impede o respeito, nem destrói a amizade. Ela subsiste a isso.

É evidente que eu gostaria que o político reflectisse um pouco. Porque quando se lê qualquer coisa, reflectimos sempre sobre isso. E eu também leio coisas de outras pessoas, e oiço os políticos, e eles também me fazem reflectir. É mútuo, não é? Estamos todos a trocar coisas uns com os outros. E quando eles falam eu oiço, E quando eu estou a falar, eles ouvem-me a mim.

Agora se alguma vez alguém fizer mudar a convicção ou o rumo a um político, o rumo essencial, então não é um grande político. Todos os grandes políticos que eu conheci, (por mais acusações que se faça de que tudo aquilo que eles pensam é agradar aos jornalistas e aos jornais, não é verdade), são uns burros teimosos, que só pensam neles mesmos, exactamente como os escritores. E incluo o Pedro Santana Lopes nesta lista. Calmamente. (RISOS E PALMAS).

 

Carlos Coelho

Clara Ferreira Alves. Nós temos uma tradição, que é a cortesia de dar a última palavra ao nosso convidado. Aproveito a oportunidade para lhe agradecer o facto de ter aceite o nosso convite. Foi, está a ser, e ainda vai ser (até esta última ronda de perguntas), uma conversa diferente, mas muito estimulante.

Ainda bem que veio, ainda bem que está connosco.

Agradeço ao Grupo Azul o facto de nos ter recebido na sua Mesa e a simpatia do vosso acolhimento. Agora a palavra ao Grupo Rosa: João Marques.

 

João Marques

Boa noite. Tendo em conta que a Clara Ferreira Alves é uma exímia e magnífica escritora, e repito, escritora, (RISOS), que dicas poderá dar a um jovem no início da sua vida política, como nós, que queira escrever os seus discursos e até, porque não, crónicas políticas? Muito obrigado.

 

Carlos Coelho

João Alexandre, do Grupo Amarelo.

 

João Alexandre

Boa noite Clara Ferreira Alves. Em nome do Grupo Amarelo, tenho duas perguntas a fazer-lhe: A primeira: se escrevesse uma crónica sobre a juventude política partidária portuguesa, chamava-lhe Crónica dos bons malandros, ou Tudo Bons Rapazes? (RISOS E PALMAS).

E a segunda: em duas palavras como caracteriza a literatura cor-de-rosa. Obrigado.

 

Clara Ferreira Alves

Obrigado. Eu escrevo crónicas políticas. No sentido em que escrevo muitas crónicas que são puramente políticas, algumas violentamente políticas. E atiro à esquerda, à direita, ao centro, em cima e em baixo. Uma coisa que me repugna em política é a falta de integridade. E portanto normalmente aquilo que me move e que põe veneno na minha pena é a falta de integridade. Eu detesto a falta de integridade. E como sou uma boa observadora de pessoas, (porque escrever é observar pessoas, e depois transfigurar a realidade, e criar personagens - mas as personagens vêm das pessoas), tenho um bom olho clínico. Li muitos livros. Li muitos livros. De literatura e não só. Topo muito bem a falta de integridade. E isso irrita-me. E acho desprezível. Políticos com falta de integridade. Integridade humana. (PALMAS)

Não gosto de gente que se faz passar por aquilo que não é. E há muita gente que se faz passar por aquilo que não é.

Segundo ponto: os discursos, se eu os escreveria. Eu dou muitas conferências, ultimamente. No último ano dei imensas. Falo sempre de improviso. Normalmente gravam. Só em três casos é que eu fiz um paper, um chamado paper, e tenho de facto conferências, imensas conferências, escritas e escrevi também artigos para revistas estrangeiras. Por exemplo, para a Polónia, agora quando eles entraram na Europa, para a República Checa, e para Espanha.

Quando escrevo para fora, evidentemente que tenho que escrever, tenho que escrever conferências, algumas em inglês, e tenho esses textos recolhidos, não sei quando é que os publicarei. Agora estou a escrever o meu romance e não vou certamente preocupar-me com isso. Quando for mais velhinha depois alguém há-de ir buscar esses escritos todos e fazer um livrinho com aquilo, e tal. E, nessa altura, pronto, já terei um estatuto que me permite ter assistentes.

Eu agora não tenho tempo para ir ao computador buscar esses despojos. A crónica política é um género muito nobre, não só em Portugal mas em toda a parte. É importante, é um contra-poder importante, é uma contra-reflexão importante. Não deve influenciar o político, ao ponto de o fazer mudar a sua integridade. É a tal coisa. Integridade é essencial. Não, não, não suporto. Costuma-se dizer: apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo. Mas o mentiroso e o coxo não me incomodam. (RISOS).

Mas o rasca incomoda-me imenso. O tipo rasca. É sempre a presunção. Armado em bom e tentando fazer-se passar por aquilo que não é, normalmente vêem-se sempre os fundilhos das calças. É isso que eu tento topar nas minhas crónicas políticas. E às vezes acho que topo. Agora, isto arranja-me imensos problemas, como vocês calculam. Tenho tido muitos inimigos, muitos problemas e muitas guerras e problemas mesmo sérios, da minha vida profissional por causa disso. Mas como digo, tive a sorte de ter escrito no Expresso e de ter continuado a escrever no Expresso onde nunca, até hoje, alguém chegou ao pé de mim e disse: “isto é forte, isto não”. Nunca aconteceu.

Esse é o dom maior que se pode dar a alguém que escreve. É a liberdade absoluta de escrever aquilo que lhe vai na cabeça (PALMAS). Podem-me dizer: “você não tem razão. Você está errada. Não concordo com aquilo que você diz”. Mas nunca ninguém me disse: “eu não publico”.

Isso devo-o ao Francisco Pinto Balsemão. É, sem dúvida, a ele. E espero que ele deixe atrás de si essa maravilhosa tradição inglesa. Eu achei sempre que ele era um liberal british. E é. Nós estamos sempre juntos todos os anos agora no Prémio Pessoa - que é um prémio que tem um conjunto de gente agradável, e eu gosto de estar ali, são pessoas de quadrantes políticos distintos, que vão do Mário Soares ao Francisco Balsemão, tem gente do PSD, gente do PS, gente que não é de parte nenhuma. E é muito agradável ver como as ideias se sobrepõem sempre às cores. E é sobretudo um júri de pessoas íntegras. A integridade reconhece a integridade.

A segunda pergunta era sobre a minha crónica dos bons rapazes e os bons malandros, não é? Bom, são a mesma coisa, não é? (RISOS).

São a mesma coisa. Os bons rapazes e os bons malandros, são a mesma seita. As juventudes partidárias. Eu não tenho simpatia pelas juventudes partidárias, para dizer a verdade. (ALGUNS PROTESTOS). Não, não. Mas é preciso que eu explique isto. Eu sou muito independente. Nalgumas coisas sou convictamente de esquerda, noutras de extrema-esquerda, noutras sou de direita e noutras de extrema-direita.

E sempre fui um bocado disto tudo. O que me deu imensos problemas na Faculdade de Direito de Lisboa, por exemplo, quando toda a gente era do MRPP ou do PC, eu não me revia em nenhum desses grupos, e foi por isso que fui para Coimbra, porque achava que eles eram todos doidos, e estavam a destruir a Faculdade de Direito, o que de facto estavam. E nessa altura eu reagi e fui-me embora. E fui-me embora porque não aguentava mais ver a UEC a dar porrada no MRPP e o MRPP a dar porrada na UEC e não se passava disso. Talvez haja aqui um certo snobismo aristocrático da minha parte, de achar que toda a gente se pode dar ao luxo de ser independente. As carreiras políticas não se fazem na independência. Eu podia ter feito uma carreira política.

Aos 22, 23 anos fui trabalhar com o Mário Soares. Nunca fui membro do Partido Socialista. E aprendi muito com ele, nunca assinei o cartão, nunca me filiei, nada, e olhava aquilo com uma enorme suspeita. Ele foi um grande mestre político, entre outros que tive, mas ensinou-me muito. Mas teve essa gentileza de me ter aceite. Uma jovenzinha a trabalhar junto dele sem ser filiada. E não só me aceitou, (e eu tinha acesso a todos aqueles segredos do partido), como nunca me disse para eu me filiar.

Mas uma vez disse-me (acho que posso contar isto em público): eu estive lá dois anos, trabalhava com ele e com o Jaime Gama. E um dia ele irritou-se imenso comigo. Ele passava o tempo a irritar-se comigo, por causa de tudo. Havia coisas no partido que eu achava detestáveis. E dizia-o. E havia gente que eu achava detestável. Mas sobretudo coisas que eu achava absolutamente detestáveis. E um dia ele irritou-se imenso comigo por uma coisa que eu tinha escrito não sei onde, (já na altura) e ele começou a gritar (ele grita imenso) e disse-me: “você nunca há-de ser ministra. Nunca há-de ser ministra de coisa nenhuma com esse comportamento”.

E eu disse um grande palavrão, mesmo daqueles maus e disse: “se é para isso eu vou-me já embora e nunca mais cá ponho os pés”. E assim saí da Rua da Emenda para nunca mais voltar. Devo ter sido uma das poucas pessoas em Portugal, talvez a única, que o mandou para um sítio muito feio. (RISOS). E somos amigos. (PALMAS).

E portanto, custa-me um pouco aceitar a norma, o dogma, a regra, e acho que as juventudes, de um modo geral, não só não têm dado grandes líderes políticos, mas têm acolhido alguns maus exemplos de líderes políticos. E tem acolhido sobretudo uns idiotas, que dizem umas coisas impensáveis. E de vez em quando há uns idiotas, por acaso nem são do vosso partido, mas há dois tipos da JS que eu acho particularmente abaixo de cão. (PALMAS)

Também deve haver da JSD, talvez eu não esteja tão atenta, mas também encontrava. (RISOS).

E dizem umas parvoíces inacreditáveis. Houve uma jovem do PS que teve a brilhante ideia, (e já é parlamentar europeia… esta facilidade com que se fazem carreiras), de querer pôr no bilhete de identidade se éramos HIV positivo ou negativo. Não me lembro que a senhora tivesse tido outra ideia estes tempos todos. E assim chegou à Europa. Isto repugna-me, sinceramente. Eu acho que não é por aqui. (PALMAS)

Gostei muito de falar com vocês. Ficávamos aqui toda a noite. Eu também diria mal das juventudes sociais-democratas. Só que agora não me estou assim a lembrar de nenhum em particular.

O Pedro Pinto. O Pedro Pinto que eu conheci. O Pedro Pinto é da minha geração. Que eu conheci magríssimo. (RISOS), e agora está assim. O Pedro Pinto era “transparente”. É uma coisa impressionante.

Eu acho que as juventudes precisavam de serem menos velhas, às vezes. Porque são muito velhas. (PALMAS). E aquela coisa de andar colado ao líder político, é péssimo. (PALMAS). A carregar a pasta. Se querem ser chefes, políticos, nunca carreguem a pasta do chefe. É o único conselho que eu vos dou. (RISOS E PALMAS)

Jorge Nuno Sá

Clara, em nome da Universidade de Verão e do seu Director, ofereço-lhe esta lembrança.

Clara Ferreira Alves

Muito obrigada.